segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Publicação na editora Mosarte

Caros:
É com felicidade que informo que alguns dos textos publicados neste blog agora fazem parte de uma coletânea de textos da Editora Mosarte. A coletânea intitulada No espaço e no tempo traz textos inéditos de jovens escritores, constituída pelo que os editores chamam de "mosaico de estilos e gêneros literários diversos".
É a primeira publicação em livro impresso desta autora.

Agradeço a todos que foram os primeiros leitores dessa pulsão de narrar, e à Editora Mosarte pela oportunidade dada aos anônimos amantes das letras.

Abraços a todos!

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

PLENA PAUSA

Um homenagem às minhas páginas em branco que gritam e esperam por mim... peço que me aguardem e me perdoem!

PLENA PAUSA

Lugar onde se faz
o que já foi feito,
branco da página,
soma de todos os textos,
foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.
Nenhuma página
Jamais foi limpa
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.

(LEMINSKI, 2002, p.29)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Aos trinta anos



Havia apenas uma semana que eu tinha completado trinta anos e precisei, por motivos burocráticos, ver a certidão de óbito de minha mãezinha. Foi então que eu me assustei: ela faleceu aos trinta anos.
Uma sensação de finitude tomou conta de meus pensamentos, de todo meu ser, e um calafrio percorreu o meu corpo. Não era o medo apenas da morte inesperada chegar até mim. Era o medo dela me encontrar sem ter vivido, sem ter sonhado, sem ter produzido ou deixado um legado neste mundo. Afinal, quando mamãe faleceu, ela já tinha três filhos e eu não tenho nenhum; ela já era uma mulher vivida, enquanto eu ainda me sinto uma jovem garota.
            Mamãe tinha muito medo do envelhecimento, das rugas, das marcas do tempo e da gravidade. Eu não me lembro dela, mas as histórias que me contaram sempre retrataram alguém muito vaidosa e bonita. Talvez por isso ela tenha morrido tão jovem... De certo modo teve seu pedido atendido, porque ela foi levada ao céu antes que os dedos do tempo tocassem sua face perfeita.
            O meu temor não é o passar do tempo e a vaidade de ver os anos levarem a juventude de nosso rosto. Meu medo sempre foi o de passar por essa vida sem produzir, sem deixar um legado e por isso cair no esquecimento. Passar por esse mundo sem deixar alguém que se lembre de nós, para permanecermos vivos nessas memórias. Minha mãe revive hoje quando eu escrevo. E reviverá cada vez que alguém se lembrar dela. Porque hoje, sem nenhuma foto guardada e sem memória de seu rosto, o que faz com que ela seja lembrada são suas histórias e seus genes no meu corpo. Dizem que sou muito parecida com ela. Então, para aqueles que com ela conviveram, olhar no meu rosto é relembrá-la, e assim ela vive mais uma vez na lembrança daquele que me olhou. Eu sou, assim, um pouco dela, um pouco de história e memória.

            Eu já sabia – aliás, desde de Balzac -  que os trinta anos eram significativos na vida de uma mulher, que era o marco de sua maturidade, da busca de felicidade de realizações pessoais. Para mim, essa idade adquiriu maior significância depois que descobri que foi a idade fatal para minha mãe. Apresentou-se como um aviso de que a vida passa rápido demais, de que juventude de nada vale se não houver uma história bem vivida, se não deixarmos vestígios de uma existência nesta terra. Hoje, vivo com uma ansiedade de fazer tudo acontecer rapidamente, de viver intensamente todas as experiências que a vida pode proporcionar, como quem tem uma sentença de morte, uma doença incurável, poucos dias de vida. Beijo meu marido todos os dias pela manhã como se nunca mais fosse vê-lo. Respondo aos meus amigos com a intensidade de sentimentos de quem se comunica pela última vez. E agradeço a cada amanhecer pela simples oportunidade de ver um novo dia.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Com Roberto Drummond


Recordo-me da primeira vez que tive um encontro com um verdadeiro escritor. Eu era apenas uma adolescente cheia de sonhos e de uma vida a acontecer, que estava empolgada com meu primeiro prêmio de crônicas e poesias que havia ganhado numa seletiva local. Foi então que conheci Roberto Drummond em um evento literário “O escritor por ele mesmo”. Ao final do encontro, enchi-me de coragem e falei para ele que eu escrevia algumas coisinhas e que gostaria muito de ser escritora um dia. Ele me autografou um CD de leituras de trechos de sua obra dizendo: “Para Aline, esperando um livro seu”. Eu realmente saí daquele evento acreditando que um dia eu levaria para ele uma publicação minha e diria que ele me inspirou a acreditar.  Mas ele já faleceu há muitos anos e eu deixei de acreditar em minha publicação.
Com o passar dos anos, a gente deixa de acreditar nos sonhos e fica cada vez mais crítico quanto ao que fazemos. Quanto mais eu estudei literatura, menos literatura produzi. Quanto mais leituras eu fiz, mas vi como meus escritos se distanciam da obra de arte. E por muitos anos neguei a folha em branco.
Mas a necessidade de escrever incomoda e cresce dentro do escritor. Eu chamo de uma pulsão narrativa vontade de narrar, de contar, mesmo que não seja apresentado a ninguém. É como uma necessidade vital de libertação, de rememoração, de conhecimento de si, dos outros, do mundo, de organizar suas memórias, ou de criar memórias do gostaria que tivesse sido a vida. É quase patológica a necessidade de escrever.
Essa pulsão é o que nos faz superar o medo da publicação. Porque publicar é expor-se à crítica, e o ser humano tende a uma necessidade imensa de aprovação. Eu queria ter tido a aprovação de Roberto Drummond e, naquele dia, ele aprovou-me previamente, muito antes de ter lido qualquer coisa que eu tivesse escrito. Ele aprovou o meu sonho, a minha coragem, o meu desejo de escrever.  
O que impediu meu sonhos de florescer foram meus medos. Mas nenhum de meus medos supera a angústia do silêncio. Descobri assim que, na verdade, o que me assusta não é o medo da desaprovação, da exposição dos sentimentos de nossa história pessoal. O que mais me assusta é o indizível, toda espécie de sensação que não encontra nas palavras substância suficiente para expressá-la. O que me assusta é o silêncio.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Milton Hatoum e Graciliano Ramos

A Festa Literária Internacional de Paraty -  FLIP 2013 -  escolheu Graciliano Ramos para ser o homenageado da edição. O escritor Milton Hatoum abriu a 11ª edição da feira com uma palestra sobre o escritor alagoano, que publicou clássicos da literatura nacional como Vidas Secas, Angústia, Infância, Memórias do Cárcere, dentre outros. 

Milton já havia falado em outras ocasiões (em palestras, crônicas e entrevistas) da sua admiração por Graciliano Ramos, de sua importância para a literatura regionalista nacional e de sua influência nos seus próprios escritos. Ainda este ano de 2013, no SESC/Araraquara, Hatoum falou durante sua palestra que a influência  de Graciliano foi fundamental para a criação de narrador de Dois Irmãos, que não pertence à elite, nem à classe média, um narrador diminuído, de uma vida diminuída, de um humilhado pela vida que é salvo pela educação dada pelo seu avô. Essa característica de seu narrador veio dos narradores de Graciliano, que deu voz às minorias humilhadas.

Disse Hatoum em entrevista:
"Graciliano, a meu ver, é uma das figuras centrais da literatura brasileira. A nossa literatura já tem, vamos dizer, grandes nomes, grandes obras. E a obra de Graciliano eu acho que está no centro do vértice dessa pirâmide. Ela é uma obra universal. Parte do local para alcançar o universal e ela, ao mesmo tempo, foi uma ruptura na literatura brasileira. Porque no Graciliano, o que quê ele conseguiu foi casar a expressão com aquilo que ela se refere da linguagem. Quer dizer há um casamento aí perfeito entre o estilo, entre a linguagem e a realidade que ela quer exprimir. Ele soube falar do essencial dos dramas humanos de uma forma concisa e deixar apenas o caroço mesmo."  (http://www.pactoaudiovisual.com.br/mestres_final/graciliano/transcricao.htm)
A aproximação entre os dois escritores, tão distantes no tempo quanto no estilo da escrita, já havia sido pensada anteriormente por alguns críticos, dentre eles, Tânia Pellegrini no artigo "Regiões, margens e fronteiras: Milton Hatoum e Graciliano Ramos", publicado no livro Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea, que aparentemente está indisponível nas livrarias, mas encontra-se disponível no google books*.

Nesse artigo, Tânia Pellegrini afirma que é possível aproximar as obras de Graciliano e Hatoum na representação de "territórios extremos" que são transformados em "regiões literárias", pela representação de territórios únicos, diversos em sua unidade, com histórias, culturas e geografias próprias, espaços que ao mesmo tempo são tão reais e simbólicos, nos quais os personagem se encontram e se desencontram, entretecendo relações identitárias próprias de cada lugar. Outra aproximação que pode ser feita entre os dois escritores, está na criação dos narradores, já confessada por Hatoum a influência de Graciliano em muitos deles. Porém, talvez a maior aproximação que se possa fazer entre os dois escritores esteja na capacidade de dirimir margens e fronteiras enquanto produzem uma literatura que tende ao contrário, ao escolherem retratar realidades peculiares de regiões específicas. A capacidade de ambos de retratar as particularidades regionais de cada personagem ao mesmo tempo que exploram a complexidade da existência humana, universal.

Aproveito a oportunidade da Flip para sugerir a leitura desse artigo e convidá-los a pensar sobre essas aproximações entre os dois autores:

* PELLEGRINI, Tânia. Regiões, margens e fronteiras: Milton Hatoum e Graciliano Ramos. In.: _____ Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Anablume; Fapesp, 2008.
Disponível em: http://books.google.com.br/


domingo, 9 de junho de 2013

Livros de verão e literatura de verdade - por Milton Hatoum

"Livros de verão e literatura de verdade"
(Por Milton Hatoum)

"Há poucos meses atrás, na Feira do Livro de Guadalajara, vi uma cena que, de algum modo, diz muito sobre a literatura e a solidão, essas irmãs siamesas.

A Feira estava cheia de gente, mas não necessariamente de leitores. Ao visitar o estande de uma editora, vi um escritor de língua espanhola, sentado diante de uma mesinha, à espera de leitores. Ele tinha um ar desolado e conversava com uma mulher. Quando eu passava perto dos dois, ele perguntou à mulher onde estavam os leitores. Ela sorriu e apontou para uma fila de leitores excitados, que queriam comprar a edição espanhola de Cinquenta Tons de Cinza, o best-seller do momento.

É improvável que os leitores dessas historinhas de sexo e violência - ou sexo com violência - leiam romances de Conrad, de Dostoievski ou de Graciliano Ramos. Quantos se aventuram a ler Coração das Trevas, Crime e Castigo ou Infância? Para a maioria dos leitores, um livro de ficção é puro entretenimento, algo que não convida a pensar nas relações humanas, no jogo social e político, na passagem do tempo e nas contradições e misérias do nosso tempo, muito menos na linguagem, na forma que forja a narrativa. Talvez por isso o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez tenha afirmado que a poesia é a arte da imensa minoria. Isso serve para a literatura e para todas as artes. Os poucos, mas felizardos espectadores da peça O Idiota, dirigida por Cibele Forjaz, sabem disso.

Flaubert costumava lamentar a época em que viveu: a crença entusiasmada e cega no progresso e na ciência, as batalhas fratricidas na França, a carnificina das guerras imperialistas, e a idiotice e bestialidade humanas, que ele explorou com ironia em sua obra. Em uma carta de sua vasta correspondência, escreveu que o ser humano não podia devorar o universo. Referia-se ao consumismo crescente na segunda metade do século 19.

O que o "Ermitão de Croisset" diria dos dias de hoje, quando a propaganda insidiosa na tevê não poupa nem as crianças e tudo gira em torno da vida de celebridades, de uma fulana famosa que teve um bebê, de sicrano que se separou de beltrana ou traiu uma fulaninha? Qual o interesse em saber que a princesa da Inglaterra está grávida?

Essas baboseiras são ainda mais graves num país como o Brasil, cuja modernidade manca ou incompleta exclui milhões de jovens de uma formação educacional consistente.

No começo da década de 1990, quando eu passava uma temporada em Saint-Nazaire, um jovem operário entrou no meu apartamento para consertar o vazamento de uma tubulação. Quando passou pela sala, viu um romance em cima da mesa e exclamou:

 - Ah, Stendhal. Li vários livros dele, e o que mais aprecio é esse mesmo: A Cartuxa de Parma.

 - E onde você os leu? Quando?

 - Aqui mesmo, ele disse. Na escola secundária.

 - Era uma das escolas públicas daquela pequena cidade no oeste da França.

Nicolas Sarkozy e outros presidentes conservadores tentaram prejudicar o ensino de literatura e ciências humanas na escola pública francesa, mas nenhum deles teve pleno êxito. Aprender a ler e a pensar criticamente é um dos preceitos de uma sociedade democrática, e esse mandamento republicano ainda vigora na França. O que os prefeitos e secretários de Educação dos quase 5.700 municípios brasileiros dizem a esse respeito?

A precariedade da educação pública é um dos problemas estruturais da América Latina. Até mesmo a Argentina, que já foi uma exceção honrosa, começa a padecer desse mal.

Comecei essa crônica evocando a solidão de um escritor em Guadalajara. Melhor assim: a solidão está na origem do romance moderno, é um de seus pilares constitutivos e faz parte do trabalho da imaginação do escritor e do leitor.

O tempo se encarrega de apagar todos os cinquenta tons de cinza, e ainda arrasta para o esquecimento os crepúsculos, cabanas e toda essa xaropada que finge ser literatura. Enquanto isso, Coração das Trevas, publicada há mais de um século, é uma das novelas mais lidas por leitores de língua inglesa."

Fonte: 
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,livros-de-verao-e-literatura-de-verdade-,980457,0.html
Acesso em 08 de janeiro de 2012

sábado, 8 de junho de 2013

Antonio Cândido indica 10 livros para conhecer o Brasil

Por Antonio Candido.*
Quando nos pedem para indicar um número muito limitado de livros importantes para conhecer o Brasil, oscilamos entre dois extremos possíveis: de um lado, tentar uma lista dos melhores, os que no consenso geral se situam acima dos demais; de outro lado, indicar os que nos agradam e, por isso, dependem sobretudo do nosso arbítrio e das nossas limitações. Ficarei mais perto da segunda hipótese.

Como sabemos, o efeito de um livro sobre nós, mesmo no que se refere à simples informação, depende de muita coisa além do valor que ele possa ter. Depende do momento da vida em que o lemos, do grau do nosso conhecimento, da finalidade que temos pela frente. Para quem pouco leu e pouco sabe, um compêndio de ginásio pode ser a fonte reveladora. Para quem sabe muito, um livro importante não passa de chuva no molhado. Além disso, há as afinidades profundas, que nos fazem afinar com certo autor (e portanto aproveitá-lo ao máximo) e não com outro, independente da valia de ambos.

Por isso, é sempre complicado propor listas reduzidas de leituras fundamentais. Na elaboração da que vou sugerir (a pedido) adotei um critério simples: já que é impossível enumerar todos os livros importantes no caso, e já que as avaliações variam muito, indicarei alguns que abordam pontos a meu ver fundamentais, segundo o meu limitado ângulo de visão. Imagino que esses pontos fundamentais correspondem à curiosidade de um jovem que pretende adquirir boa informação a fim de poder fazer reflexões pertinentes, mas sabendo que se trata de amostra e que, portanto, muita coisa boa fica de fora.

São fundamentais tópicos como os seguintes: os europeus que fundaram o Brasil; os povos que encontraram aqui; os escravos importados sobre os quais recaiu o peso maior do trabalho; o tipo de sociedade que se organizou nos séculos de formação; a natureza da independência que nos separou da metrópole; o funcionamento do regime estabelecido pela independência; o isolamento de muitas populações, geralmente mestiças; o funcionamento da oligarquia republicana; a natureza da burguesia que domina o país. É claro que estes tópicos não esgotam a matéria, e basta enunciar um deles para ver surgirem ao seu lado muitos outros. Mas penso que, tomados no conjunto, servem para dar uma ideia básica.

Entre parênteses: desobedeço o limite de dez obras que me foi proposto para incluir de contrabando mais uma, porque acho indispensável uma introdução geral, que não se concentre em nenhum dos tópicos enumerados acima, mas abranja em síntese todos eles, ou quase. E como introdução geral não vejo nenhum melhor do que O povo brasileiro (1995), de Darcy Ribeiro, livro trepidante, cheio de ideias originais, que esclarece num estilo movimentado e atraente o objetivo expresso no subtítulo: “A formação e o sentido do Brasil”.

Quanto à caracterização do português, parece-me adequado o clássico Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, análise inspirada e profunda do que se poderia chamar a natureza do brasileiro e da sociedade brasileira a partir da herança portuguesa, indo desde o traçado das cidades e a atitude em face do trabalho até a organização política e o modo de ser. Nele, temos um estudo de transfusão social e cultural, mostrando como o colonizador esteve presente em nosso destino e não esquecendo a transformação que fez do Brasil contemporâneo uma realidade não mais luso-brasileira, mas, como diz ele, “americana”.

Em relação às populações autóctones, ponho de lado qualquer clássico para indicar uma obra recente que me parece exemplar como concepção e execução: História dos índios do Brasil (1992), organizada por Manuela Carneiro da Cunha e redigida por numerosos especialistas, que nos iniciam no passado remoto por meio da arqueologia, discriminam os grupos linguísticos, mostram o índio ao longo da sua história e em nossos dias, resultando uma introdução sólida e abrangente.

Seria bom se houvesse obra semelhante sobre o negro, e espero que ela apareça quanto antes. Os estudos específicos sobre ele começaram pela etnografia e o folclore, o que é importante, mas limitado. Surgiram depois estudos de valor sobre a escravidão e seus vários aspectos, e só mais recentemente se vem destacando algo essencial: o estudo do negro como agente ativo do processo histórico, inclusive do ângulo da resistência e da rebeldia, ignorado quase sempre pela historiografia tradicional. Nesse tópico resisto à tentação de indicar o clássico O abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, e deixo de lado alguns estudos contemporâneos, para ficar com a síntese penetrante e clara de Kátia de Queirós Mattoso, Ser escravo no Brasil (1982), publicado originariamente em francês. Feito para público estrangeiro, é uma excelente visão geral desprovida de aparato erudito, que começa pela raiz africana, passa à escravização e ao tráfico para terminar pelas reações do escravo, desde as tentativas de alforria até a fuga e a rebelião. Naturalmente valeria a pena acrescentar estudos mais especializados, como A escravidão africana no Brasil (1949), de Maurício Goulart ou A integração do negro na sociedade de classes (1964), de Florestan Fernandes, que estuda em profundidade a exclusão social e econômica do antigo escravo depois da Abolição, o que constitui um dos maiores dramas da história brasileira e um fator permanente de desequilíbrio em nossa sociedade.

Esses três elementos formadores (português, índio, negro) aparecem inter-relacionados em obras que abordam o tópico seguinte, isto é, quais foram as características da sociedade que eles constituíram no Brasil, sob a liderança absoluta do português. A primeira que indicarei é Casa grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre. O tempo passou (quase setenta anos), as críticas se acumularam, as pesquisas se renovaram e este livro continua vivíssimo, com os seus golpes de gênio e a sua escrita admirável – livre, sem vínculos acadêmicos, inspirada como a de um romance de alto voo. Verdadeiro acontecimento na história da cultura brasileira, ele veio revolucionar a visão predominante, completando a noção de raça (que vinha norteando até então os estudos sobre a nossa sociedade) pela de cultura; mostrando o papel do negro no tecido mais íntimo da vida familiar e do caráter do brasileiro; dissecando o relacionamento das três raças e dando ao fato da mestiçagem uma significação inédita. Cheio de pontos de vista originais, sugeriu entre outras coisas que o Brasil é uma espécie de prefiguração do mundo futuro, que será marcado pela fusão inevitável de raças e culturas.

Sobre o mesmo tópico (a sociedade colonial fundadora) é preciso ler também Formação do Brasil contemporâneo, Colônia (1942), de Caio Prado Júnior, que focaliza a realidade de um ângulo mais econômico do que cultural. É admirável, neste outro clássico, o estudo da expansão demográfica que foi configurando o perfil do território – estudo feito com percepção de geógrafo, que serve de base física para a análise das atividades econômicas (regidas pelo fornecimento de gêneros requeridos pela Europa), sobre as quais Caio Prado Júnior engasta a organização política e social, com articulação muito coerente, que privilegia a dimensão material.

Caracterizada a sociedade colonial, o tema imediato é a independência política, que leva a pensar em dois livros de Oliveira Lima: D. João VI no Brasil (1909) e O movimento da Independência (1922), sendo que o primeiro é das maiores obras da nossa historiografia. No entanto, prefiro indicar um outro, aparentemente fora do assunto: A América Latina, Males de origem (1905), de Manuel Bonfim. Nele a independência é de fato o eixo, porque, depois de analisar a brutalidade das classes dominantes, parasitas do trabalho escravo, mostra como elas promoveram a separação política para conservar as coisas como eram e prolongar o seu domínio. Daí (é a maior contribuição do livro) decorre o conservadorismo, marca da política e do pensamento brasileiro, que se multiplica insidiosamente de várias formas e impede a marcha da justiça social. Manuel Bonfim não tinha a envergadura de Oliveira Lima, monarquista e conservador, mas tinha pendores socialistas que lhe permitiram desmascarar o panorama da desigualdade e da opressão no Brasil (e em toda a América Latina).

Instalada a monarquia pelos conservadores, desdobra-se o período imperial, que faz pensar no grande clássico de Joaquim Nabuco: Um estadista do Império (1897). No entanto, este livro gira demais em torno de um só personagem, o pai do autor, de maneira que prefiro indicar outro que tem inclusive a vantagem de traçar o caminho que levou à mudança de regime: Do Império à República (1972), de Sérgio Buarque de Holanda, volume que faz parte da História geral da civilização brasileira, dirigida por ele. Abrangendo a fase 1868-1889, expõe o funcionamento da administração e da vida política, com os dilemas do poder e a natureza peculiar do parlamentarismo brasileiro, regido pela figura-chave de Pedro II.

A seguir, abre-se ante o leitor o período republicano, que tem sido estudado sob diversos aspectos, tornando mais difícil a escolha restrita. Mas penso que três livros são importantes no caso, inclusive como ponto de partida para alargar as leituras.

Um tópico de grande relevo é o isolamento geográfico e cultural que segregava boa parte das populações sertanejas, separando-as da civilização urbana ao ponto de se poder falar em “dois Brasis”, quase alheios um ao outro. As consequências podiam ser dramáticas, traduzindo-se em exclusão econômico-social, com agravamento da miséria, podendo gerar a violência e o conflito. O estudo dessa situação lamentável foi feito a propósito do extermínio do arraial de Canudos por Euclides da Cunha n’Os sertões (1902), livro que se impôs desde a publicação e revelou ao homem das cidades um Brasil desconhecido, que Euclides tornou presente à consciência do leitor graças à ênfase do seu estilo e à imaginação ardente com que acentuou os traços da realidade, lendo-a, por assim dizer, na craveira da tragédia. Misturando observação e indignação social, ele deu um exemplo duradouro de estudo que não evita as avaliações morais e abre caminho para as reivindicações políticas.

Da Proclamação da República até 1930 nas zonas adiantadas, e praticamente até hoje em algumas mais distantes, reinou a oligarquia dos proprietários rurais, assentada sobre a manipulação da política municipal de acordo com as diretrizes de um governo feito para atender aos seus interesses. A velha hipertrofia da ordem privada, de origem colonial, pesava sobre a esfera do interesse coletivo, definindo uma sociedade de privilégio e favor que tinha expressão nítida na atuação dos chefes políticos locais, os “coronéis”. Um livro que se recomenda por estudar esse estado de coisas (inclusive analisando o lado positivo da atuação dos líderes municipais, à luz do que era possível no estado do país) é Coronelismo, enxada e voto (1949), de Vitor Nunes Leal, análise e interpretação muito segura dos mecanismos políticos da chamada República Velha (1889-1930).

O último tópico é decisivo para nós, hoje em dia, porque se refere à modernização do Brasil, mediante a transferência de liderança da oligarquia de base rural para a burguesia de base industrial, o que corresponde à industrialização e tem como eixo a Revolução de 1930. A partir desta viu-se o operariado assumir a iniciativa política em ritmo cada vez mais intenso (embora tutelado em grande parte pelo governo) e o empresário vir a primeiro plano, mas de modo especial, porque a sua ação se misturou à mentalidade e às práticas da oligarquia. A bibliografia a respeito é vasta e engloba o problema do populismo como mecanismo de ajustamento entre arcaísmo e modernidade. Mas já que é preciso fazer uma escolha, opto pelo livro fundamental de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (1974). É uma obra de escrita densa e raciocínio cerrado, construída sobre o cruzamento da dimensão histórica com os tipos sociais, para caracterizar uma nova modalidade de liderança econômica e política.

Chegando aqui, verifico que essas sugestões sofrem a limitação das minhas limitações. E verifico, sobretudo, a ausência grave de um tópico: o imigrante. De fato, dei atenção aos três elementos formadores (português, índio, negro), mas não mencionei esse grande elemento transformador, responsável em grande parte pela inflexão que Sérgio Buarque de Holanda denominou “americana” da nossa história contemporânea. Mas não conheço obra geral sobre o assunto, se é que existe, e não as há sobre todos os contingentes. Seria possível mencionar, quanto a dois deles, A aculturação dos alemães no Brasil (1946), de Emílio Willems; Italianos no Brasil (1959), de Franco Cenni, ou Do outro lado do Atlântico (1989), de Ângelo Trento – mas isso ultrapassaria o limite que me foi dado.

No fim de tudo, fica o remorso, não apenas por ter excluído entre os autores do passado Oliveira Viana, Alcântara Machado, Fernando de Azevedo, Nestor Duarte e outros, mas também por não ter podido mencionar gente mais nova, como Raimundo Faoro, Celso Furtado, Fernando Novais, José Murilo de Carvalho, Evaldo Cabral de Melo etc. etc. etc. etc.

* Artigo publicado na edição 41 da revista Teoria e Debate – em 30/09/2000

**Antonio Candido é sociólogo, crítico literário e ensaísta